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Educação motora na infância é essencial para resultado olímpico

"Sem essa base inicial, que está na escola, a gente vai viver eternamente de esforços individuais", diz Katia Rubio

Por Agência Brasil
24/02/2016 • 11h15
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Autora de uma das mais completas obras sobre a história olímpica do Brasil, a professora Katia Rubio, da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP), é defensora de uma educação motora durante a infância que coincida com a alfabetização tradicional.

“A educação física no Brasil é tratada como uma disciplina de segunda categoria nos projetos educacionais. Enquanto isso acontecer, nós corremos o risco de ser cada vez mais analfabetos motores”, destaca a especialista.

"Sem essa base inicial, que está na escola, a gente vai viver eternamente de esforços individuais", completa.

Em seu livro Atletas Olímpicos Brasileiros, a autora lista os mais de 1,7 mil atletas que o país enviou aos jogos até a última edição, em Londres, em 2012. Ganhadora da Medalha de Mérito Esportivo do Ministério do Esporte, ela evita eleger um personagem ou episódio que mais lhe impressionou entre tantas narrativas de superação e carências que formam a quase centenária história da participação do país nos jogos – iniciada em 1920, na Antuérpia.

Em entrevista à Agência Brasil, Katia afirma que o país ainda não desenvolveu uma política de Estado para o esporte, aponta reflexos das desigualdades brasileiras no desempenho olímpico e pede que os torcedores não recorram aos atletas olímpicos para compensar suas frustrações com o futebol. "O atleta olímpico não merece passar por isso."

Leia abaixo os principais trechos da entrevista com Katia Rubio:

Rio de Janeiro - Professora da USP e autora do livro Atletas Olímpicos Brasileiros, Katia Rubio, diz que a educação motora na infância é fundamental para o crescimento olímpico (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Rio de Janeiro - Professora da USP e autora do livro Atletas Olímpicos Brasileiros, Katia Rubio, diz que a educação motora na infância é fundamental para o crescimento olímpico - Tânia Rêgo/Agência Brasil

Agência Brasil: O Brasil é um país muito marcado por diversos tipos de desigualdades. Essas desigualdades também aparecem quando a gente olha a história olímpica?

Katia Rubio: O esporte no Brasil nasce aristocrático, e as brechas que a aristocracia deixava eram preenchidas por atletas ligados às Forças Armadas. Há uma tradição das Forças Armadas de preparar os atletas que chegam ao nível olímpico. Essa realidade se transforma depois da Segunda Guerra Mundial, quando efetivamente as camadas populares começam a ter acesso a instalações esportivas e passam a treinar e conquistar esses lugares. Mas ainda hoje essa desigualdade se coloca em muitas modalidades e dificulta imensamente o desenvolvimento do esporte no Brasil.

Agência Brasil: Há alguma forma de desigualdade que você destacaria? A regional e de renda?
Katia: Certamente. Basta você ver o mapa olímpico brasileiro e quantos atletas temos das regiões Norte e Centro-Oeste em comparação com as regiões Sul, Sudeste e Nordeste. Essa desigualdade econômica obviamente se reflete no mapa olímpico brasileiro.

Agência Brasil: O Diagnóstico do Esporte mostrou no ano passado que há menos incentivos para que meninas pratiquem esporte. Essa desigualdade no início da formação chega até o nível olímpico?
Katia: O resultado olímpico é um reflexo de uma construção histórica. Isso é inegável. As mulheres foram proibidas por lei de praticar algumas modalidades esportivas. A construção de uma atleta olímpica demanda anos de treinamento. Entre as mulheres terem oportunidade de praticar esporte e terem resultado, ainda há um longo caminho a se percorrer. Acredito que esses resultados positivos já alcançados são muito mais a prova de uma luta individual, e de uma luta de pequenos grupos, do que de uma política de Estado.

Agência Brasil: O país cresceu em número de medalhas nos últimos anos, mas ele pode ser considerado uma potência olímpica? O que falta para isso?
Katia: Não. O que falta para o Brasil ser uma potência olímpica é uma política de Estado para o esporte, que ainda não existe. O que o Brasil tem até hoje são algumas políticas de governo que se fortaleceram a partir da criação do Ministério do Esporte. Mas isso ainda não é suficiente para que a gente tenha um desenvolvimento em quantidade e qualidade que possa levar o Brasil a ser considerado uma potência olímpica. O fato de sediarmos os Jogos Olímpicos não representa o desenvolvimento das condições de treinamento do atleta, e é a performance do atleta que vai de fato identificar o país como uma potência olímpica. As potências são aquelas que ao longo dos anos se afirmam entre os dez primeiros colocados nas diferentes edições olímpicas, e isso tem uma relação direta com o desenvolvimento econômico e educacional desses países.

Agência Brasil: Ter uma política de Estado, então, tem a ver com investimentos em educação?
Katia: Claro que sim. A educação motora da criança poderia começar na escola junto com a educação cognitiva, e isso não acontece. A educação física no Brasil é tratada como uma disciplina de segunda categoria nos projetos educacionais. Enquanto isso acontecer, nós corremos o risco de ser cada vez mais analfabetos motores.

Agência Brasil: O que o Brasil pode fazer para conseguir progresso nas próximas edições dos jogos?
Katia: Quatro anos são muito pouco. Você não forma um atleta olímpico em um ciclo olímpico. Para chegar a olímpico, o atleta precisa de 8 a 12 mil horas de treinamento. Não tem magia, não tem milagre. O que eu vejo é a necessidade de termos a educação física nas escolas desde muito cedo, para que a criança tenha a oportunidade de desenvolver suas habilidades motoras, e tendo as demais características que levam uma pessoa a se tornar atleta, chegar aos 14, 15 anos com condições de entrar no treinamento esportivo, que é o início da especialização para se tornar um atleta. Sem essa base inicial, que está na escola, a gente vai viver eternamente de esforços individuais.

Agência Brasil: Quando você diz cedo é na pré-escola mesmo?
Katia: Sim, porque a história do esporte olímpico brasileiro é construída dentro de clubes, que são privados. Alguns atletas que conseguiram furar essa barreira social, chegaram a ser olímpicos. Outros tantos, inúmeros, milhares, ficaram pelo caminho justamente pela falta de apoio.

Rio de Janeiro - Professora da USP e autora do livro Atletas Olímpicos Brasileiros, Katia Rubio, diz que a educação motora na infância é fundamental para o crescimento olímpico (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Rio de Janeiro - Professora da USP e autora do livro Atletas Olímpicos Brasileiros, Katia Rubio - Tânia Rêgo/Agência Brasil

Agência Brasil: Um dos argumentos para sediar a Olimpíada era que o esporte olímpico do país cresceria e seria beneficiado. Isso aconteceu? Qual é a sua avaliação?

Katia: Não aconteceu e sabíamos que isso não aconteceria. Esse discurso era falacioso. Um projeto de desenvolvimento do esporte exige mais de uma década, e não apenas alguns poucos anos para financiar uma realidade que se mostra difícil, diante de tantos problemas que temos. Foi apenas um discurso para conquistar a condição olímpica e nada mais do que isso.

Agência Brasil: Sediar a Olimpíada vai aumentar a pressão sobre os atletas brasileiros? A proximidade da torcida pode ter algum efeito negativo?

Katia: Isso depende muito do atleta. Tem atleta que é absolutamente acostumado a lidar com esse tipo de pressão. Há também a falta de uma cultura esportiva do povo, que está acostumado a assistir futebol, e acha que o esporte olímpico é como o futebol. O esporte olímpico exige conhecimento e uma educação para ele, e isso não acontece. Querer que os atletas brasileiros olímpicos satisfaçam a todas as frustrações que o futebol tem gerado para o país é absolutamente desprezível. O atleta olímpico não merece passar por isso. Nós, que lidamos com isso, sabemos tudo o que está por trás e toda a falta de incentivo e de condições para os atletas chegarem e desempenharem de igual para igual com os atletas bem preparados do mundo inteiro.

Agência Brasil: Quais expectativas as pessoas herdam do futebol e levam para o esporte olímpico que são injustas?
Katia: O fato de ser um dos melhores do mundo. Mesmo diante de toda a decadência do futebol, ainda há um discurso ufanista, uma crença de que ganharemos de todos e quaisquer times que aparecerem. O esporte olímpico é muito mais do que isso. Há muitos bons atletas em semelhantes condições de rendimento, o que proporciona resultados muitas vezes desejados, mas inesperados na Olimpíada. É preciso estar preparado para isso. Todos os atletas que vem ao Brasil participar são os melhores em suas modalidades. Não existe ali ninguém que esteja em uma condição inferiorizada em relação ao outro. Antes de mais nada é preciso muito respeito com todo mundo.

Agência Brasil: A cultura do país também influencia no perfil de seus atletas? Você identifica algumas características específicas dos atletas brasileiros?
Katia: Cada país tem as suas idiossincrasias, tem as suas características peculiares que levam os atletas a se desempenhar melhor em um ou outro esporte. E o Brasil não é diferente. Ter um número enorme de atletas no atletismo reflete, por exemplo, a falta de condições materiais para essas crianças habilidosas irem para outras modalidades. E o atletismo, por ser uma modalidade que exige basicamente o corpo e nada de equipamentos, justifica o número enorme de atletas tanto no feminino quanto masculino. E também no futebol. O atletismo e o futebol são as duas modalidades com o maior número de atletas na história olímpica do Brasil.

Agência Brasil: Ao longo do século 20, o Brasil teve diversos ciclos políticos diferentes e duas ditaduras. Esses períodos deixaram marcas na participação olímpica?
Katia: O esporte é um microcosmo da sociedade. Toda edição olímpica reflete proximamente aquilo que acontece não apenas no país como no mundo. Se olharmos para a linha do tempo dos Jogos Olímpicos, não é difícil identificar aquilo que acontece não apenas no Brasil, mas no mundo como um todo. Guerras, Guerra Fria, a ditadura militar, a abertura política. Tudo isso se espelha no cenário olímpico brasileiro.

Agência Brasil: Muita gente ficou surpresa com a saudação militar (continência) feita por diversos atletas brasileiros no Pan [de Toronto, em 2015], mas as Forças Armadas sempre foram muito presentes na história olímpica brasileira. O papel delas foi mudando ao longo do tempo?
Katia: Antigamente, quando falo das Forças Armadas, falo realmente do sujeito que entrava soldado e chegava a ser oficial. Hoje, há uma política diferenciada em que as Forças Armadas chamam atletas para se tornarem militares. São dois momentos diferentes do esporte militar. Primeiro, era o militar que se tornava atleta. Hoje, é o atleta que se torna militar. São situações distintas, o que não desmerece em nada o esforço desses atletas. É um reflexo da leitura que as Forças Armadas fazem hoje da importância de se ter um atleta de destaque nas suas corporações.

Agência Brasil: Falta reconhecimento aos atletas que não ganham medalha?
Katia: Claro que sim, porque chegar à condição de olímpico já é um feito absolutamente maravilhoso. Pouca gente sabe a quantidade de atletas que ficaram entre o quarto e o nono lugar na história olímpica brasileira e que deixaram de ganhar uma medalha por uma fração segundo, por um detalhe na preparação e que são tão merecedores de destaque e de elogios quanto são os medalhistas. (Vinícius Lisboa - Repórter da Agência Brasil)

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