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A Casa e a Árvore

Por Samuel Medeiros
05/05/2018 • 07h48
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Poucas construções em Campo Grande relembram o passado como é comum em cidades mais antigas. E nem estou falando em cidades históricas, esses museus a céu aberto, edificações esmaecidas pelo tempo, alvenarias carcomidas e desbotadas onde a habitação humana deixou marcas e, hoje, são referências de memória. Nossa cidade é considerada quase nova (embora já centenária) e aguarda se situar no rol de outras com tal ou qual celebridade, senão histórica, pelo menos geográfica. Como são poucas as casas com esse perfil, observei uma exceção. 

Descendo pela Rua 14 de Julho num dia nublado com garoa persistente – tarde por si só deprimente e sem graça – parei o carro no mesmo sinaleiro que teima em fechar simplesmente ao perceber minha presença. A vista percorreu preguiçosamente os arredores, olhei as placas e havia um “concerta-se móveis”, (com certeza haveria um espetáculo musical pelos próprios móveis ou um acordo político entre eles, pesei com bom humor); olhei as casas comerciais em volta, e minha vista parou numa velha casa de esquina.

Não era nova nem velha embora em ruínas, nem teria adquirido a respeitabilidade da velhice, já que as construções deste tipo tendem a assim se tornar pelo esquecimento.  Esqueceram-na, tornou-se velha não tanto pela idade, mas por ter-se transformado numa tapera desprezada, perdida em suas origens – quem sabe oriunda de expressivo fluxo comercial ou, anteriormente, abrigado família dessas se alcunhavam de respeitáveis. Fixei o olhar.

No lugar onde haveria as poetas havia uma vedação com tijolos à vista. Mais parecia um ataúde desbotado; no que seriam as janelas, os mesos tijolos de cor marrom duvidosa. Paredes de alvenaria com pintura de antanho, decorada, primeiro com o que chamam “grafite” (para mim o material do lápis, ora...) e depois com pichações de intrincadas mensagens. Uma casa literalmente fechada aos olhares de curiosos. Pensei: está aí uma esquecida que se recolheu, ensimesmou-se, ninguém poderá aperceber-lhe os segredos. Não haveria opção de alguém da rua cuidar do que se passava lá dentro, se é que haveria um “lá dentro”. O teto, meio se esboroando, ainda sustentava galhardamente as telhas inteiras, porém sujas pelo limo da umidade.

Na casa, observei uma árvore; não ao lado, no jardim, no quintal. Era NA casa. Arreganhavam-se pelas paredes, belos e disformes caules de uma planta anônima, um vegetal ousado crescendo em lugar intrincado, disputando espaços com os tijolos que encobriam a porta, alimentando-se da surrada alvenaria e bebendo das eventuais chuvas. Uma árvore de cores fortes, um verde apressado e desconfiado da má localização, porém honesto verde. Os galhos se uniam às paredes como se agarrando a algo desesperado para dar vida aos escombros; não podiam cair para a rua porque alguém seria capaz de arrancá-los; não podiam espalhar-se e permaneciam lá grudados como essas trepadeiras comuns que vemos nas pequenas casas onde ainda existem jardins, A árvore na parede desafiava a lógica. Agarrava-se à vida numa casa extenuada; uma harmonia dos contrários. 

Fiquei ensimesmado com essa manifestação da procura da preservação. A árvore nasceu ali, ali ficou e se virou como pode, mesmo diante de uma rua movimentada e ar insalubre dos carros expelindo o gás carbônico que destrói não só os pulmões das pessoas, como as próprias árvores que já não conseguem exercer seu papel de oxigenação do ar.

Estava ali a constatação de um passado remodelado pela teimosa natureza. Na casa antiga, alguma coisa insistia na vida, vida vegetal, mas vida. Pensei cá comigo: se a intervenção humana não acabar com a árvore, esta se tornará tão antiga como sua hospedeira a carcomida parede. Tornar-se-ão ambas velhas e respeitosas. Como a cidade quer ser.
Ledo engano. Retornei algumas semanas depois. Tudo modificado. Intervieram na idade da velha casa retirando  a árvore e cobrindo o espaço com cimento. Modernidade em alta e poesia em baixa,     

*O autor é advogado e escritor, associado efetivo nº 6 do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso o Sul. O livro "Informações (i)rrelevantes" foi lançado em março/2018 pela Editora Penalux.

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