RÁDIOS

OPINIÃO

Jamais direi adeus

Por Redação
05/03/2013 • 07h31
Compartilhar

Nunca me esqueci: em maio de 2006, numa visita ao campo de concentração de Auschwitz,  o Papa Bento XVI pronunciou um famoso discurso que ganhou o mundo: “Senhor, por que silenciaste? Por que toleraste tudo isto?”, perguntou o Pontífice para o espanto geral.  De imediato, analistas levantaram a hipótese de que, diante do que significou o horror nazista, o Santíssimo não estaria, na verdade, questionando Deus, perguntando se Ele não poderia ter feito alguma coisa para impedir tamanho sacrifício humano?.

Agora, no discurso de despedida, Bento XVI outra vez fez alusões a Deus, utilizando a metáfora do barco de Pedro à deriva, sugerindo por alto as mesmas indagações que fez em Auschwitz.

Por isso, desconfio: será que no fundo (bem no fundo) o Papa tenha optado pela renúncia por que começou a flertar com o ateísmo? Será que suas dúvidas chegaram a tal extremo que ele concluiu que precisaria de um tempo para pensar nesta questão fundamental da civilização ocidental? Isto é, no confronto cada vez mais candente entre razão e fé, ciência e religião, racionalismo e misticismo.

Um Papa que, de repente, começa a duvidar da existência de Deus, realmente, não pode comandar a Igreja. A não ser que fosse um cínico. E isso parece que Ratzinger não é. Na verdade, ele é reconhecido como grande intelectual, leitor dos clássicos e treinado em Kant. Neste campo, uma mente tão autocentrada e com formação tão sólida, jamais teria qualquer laivo mental que o levasse a questionar questões da fé.

Mesmo assim, como especulação maliciosa, talvez valesse a pena indagar se um homem como o Papa XVI, assistindo a tantas contradições humanas dentro da Igreja– corrupção, jogos de poder, denúncias contra padres envolvendo orgias e pedofilia – não tenha começado a se perguntar, com todo seu anteparo cultural, onde estará Deus neste momento.  

Toda essa situação me lembra do filme do diretor italiano Nani Moretti, de 2011, "Habemus Papam", grande sucesso do Festival de Cannes, cujo personagem central é um cardeal que foi escolhido para ser Papa e, diante da magnitude do cargo, entre em crise de pânico, e não consegue se revelar ao mundo.

Nani representa nesta produção um psicanalista ateu que é chamado às pressas para "curar" o futuro Papa de seus conflitos existenciais, iniciando assim uma discussão sobre o humano e o divino de uma forma divertida. Não vou contar o fim do filme, mas o enredo da trama é tratado com delicadeza extrema, mostrando que a função papal tem uma dimensão que transcende a humanidade, pois conflui no mesmo centro da ação o paradoxo entre ser, ao mesmo tempo, um chefe de Estado e um líder religioso. Não é fácil combinar pragmatismo com espiritualismo.

Mesmo assim, durante a cobertura da renúncia papal pela imprensa vi muita gente reclamar do excesso de informação sobre o mesmo assunto. O tempo que a TV dedicou à pauta e o espaço concedido pelos jornais impressos, mídias eletrônicas etc, atingiram um ponto de saturação. "Pô, não se fala de outra coisa", comentavam. "Não aguento mais ouvir falar do Papa", escutei aqui e ali.

Estas reclamações até procedem por causa do monotematismo midiático. Mesmo assim, considero que a cobertura foi correta porque trata-se de um fato que situa a sociedade contemporânea no fluxo da história. Imagina-se que nos próximos séculos haverá estudiosos e pesquisadores falando sobre este período, trazendo à tona novas revelações, hoje encobertas pelo segredo mantido pelos principais protagonistas dos acontecimentos.

"A verdadeira história é secreta", escreveu Jorge Luis Borges num de seus contos mais esplendorosos. Trata-se de uma frase que resume a nossa insondável capacidade de explorar fatos relevantes que ocorrem de tempos em tempos. Certamente, em sua nova vida, no claustro, Ratzinger poderá escrever um relato detalhado sobre o que aconteceu, sem se preocupar que isso possa ser revelado em vida.

Daí que tudo é possível de ser imaginado e especulado. E se ele confessar, em textos  não revelados por décadas, que foi tocado pela centelha da dúvida sobre a existência de Deus? Isso, certamente, pode não ser verdade, lógico, mas poderá render um belo romance, não? Ou um livro-reportagem? Sei lá. Mas uma coisa é certa: a renúncia foi a melhor maneira de Bento XVI dizer ao mundo que jamais vai nos dizer adeus. Ele ficará presente por muito tempo em nossas mentes repletas de imaginação labirínticas.

*Dante Filho é jornalista

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.

Mais de Opinião