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OPINIÃO

O bode velho e as cabritinhas

Por Redação
19/02/2013 • 08h02
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A história é antiga, mas tem grande valor como metáfora viva de nosso tempo. O sujeito vivia uma situação dificílima. A mulher reclamava o tempo todo que faltava pão e leite em casa. Os filhos choravam de fome. Os sogros diziam que ele, o provedor, era imprestável. O dia a dia era o inferno na terra. Chegou determinado momento, quando tudo desandava de maneira irrecorrível,  que o homem resolveu procurar o padre da cidade.

Contou seu drama. Chorou, lamentou-se, estava pensando em suicidar-se. O vigário ouviu pacientemente. Colocou a mão na cabeça do sujeito e deu a solução milagrosa: encontre um bode velho, fedorento, e o coloque no meio da sala. Daqui a alguns dias volte a me procurar e me diga como está a situação”.
 
Assim fez o sujeito. Colocou o bode no meio da sala e esperou. Passados os dias combinados, voltou à paróquia para falar com o padre. Estava pálido, com profundas olheiras, sujo, amassado, entregue ao desespero absoluto. O padre perguntou como estavam as coisas e o homem ajoelhou-se prostrado ao chão e pediu a Deus forças para sobreviver mais um dia, pois aquele animal em sua casa tinha redobrado o caos, tudo ficou insuportável, ele não ia aguentar.
 
O padre assistiu a cena com paciência ascética e lhe disse com firmeza: volte lá para a sua casa e tire o bode da sala, e vamos ver o acontece. Passaram-se uns dois dias e o sujeito reapareceu alegre e exultante, dizendo que o padre havia operado um milagre e que o ambiente doméstico havia se tornado um verdadeiro paraíso na terra.
 
Moral da história: se as coisas estão ruins no primeiro momento, tenha paciência porque ficará melhor depois que se tirar o bode da sala.
 
Agora transponho essa situação para o que vejo estar acontecendo com determinada cidade do nosso Estado. O novo prefeito chegou, achou que as coisas estavam desarrumadas, ficou inconformado com a bagunça instalada, com as caixas pretas escondidas, as armadilhas legais, as bombas de efeito retardado, e, com tudo isso, meio confuso, sem saber o que fazer, decidiu conversar com o bispo. 
 
Como havia sido eleito com a promessa de colocar ordem na casa, embora a cada movimento, só recebesse críticas, relatou seu drama ao mentor religioso, que, depois de pensar muito, orar e pedir forças ao senhor, estalou o dedo e sugeriu que ele colocasse um bode em cada repartição.
 
O prefeito assim o fez. No primeiro momento, a coisa pegou fogo, a reclamação foi geral. Sua reputação desceu alguns degraus. A confusão, que já era grande, piorou. Os funcionários foram para as ruas protestar. A população começou a perceber que tudo ia dar errado. As medidas adotadas eram contraditórias. Ninguém conseguia entender o que estava acontecendo.
 
O prefeito parecia não estar conseguindo se adaptar às suas novas funções. Até sua esposa reclamava. Seus filhos começaram a ouvir piadinhas na escola. Ele começou a perder os cabelos. Sua pele estava ficando mais baça. Ele emagrecia. O tempo o consumia de maneira cruel. Quando mais horas ele trabalhava, mais sobressaia a impressão de que nada acontecia.
 
Os aliados políticos pressionavam. Queriam cargos. Os vereadores estavam ficando indóceis. Os setores essenciais da administração estavam à deriva. Não havia controle de nada. Aqui e ali sussurravam que já estavam surrupiando o caixa. Enfim, a cidade se esburacava, epidemias lotavam os postos de saúde, obras eram paralisadas, as escolas não tinham suprimento de material, mas os bodes permaneciam firmes e fortes, exalando o tradicional odor de coisa ruim.
 
Só restava ao prefeito reclamar da herança maldita”, que não o estavam deixando trabalhar, que os ataques da imprensa eram injustos, que tudo ia se arrumar, que ele tinha um projeto de administração moderno, bastava apenas que os cidadãos compreendessem que tudo era uma fase passageira e que a palavra de ordem deveria ser "paciência".
 
Mas isso não adiantou muito. As pressões permaneciam insuportáveis. Até que chegou um momento de grande apreensão, e o prefeito, numa madrugada chuvosa, com a cidade vazia, bateu na porta do bispo para conversar no mais absoluto sigilo. Primeiro abraçou-o e chorou. Depois orou e pediu forçar.
 
O bispo ouviu e deu-lhe o conselho conhecido: agora tirem os bodes das salas que tudo vai melhor. O prefeito fitou fundo nos seus olhos do santo homem, fez uma cara de bom samaritano, pensou um pouco, e, finalmente, disse: "não posso senhor, me afeiçoei demais a eles, e, ademais,  já começaram a nascer as cabritinhas!". Fecha o pano.

* Dante Filho é jornalista

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