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Passos do gentil

Por Redação
02/12/2008 • 08h10
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Escuto os passos do gentil. À tarde, ele atravessa as ruas e avenidas, num ritmo de caminhada regular, e cumprimenta quase todos que se interpõem a sua vista. Admiro como alguém tem a capacidade de transmitir breves palavras de saudações numa seqüência intermitente como se fosse a primeira abordagem. Ao ser comum, dizer “tudo bem?” ou “como vai?” torna-se mecânico e insípido, quase uma obrigação. Como uma recorrência enfadonha à formalidade. Para o gentil, não. Tudo é renovação.
O presente é um tempo que não existe, dizem alguns, enquanto outros sustentam que cambaleia e se esfumaça imediatamente em passado. Retomo a crítica do historiador Immanuel Wallerstein ao que chama de atenção excessiva ao “presentismo” que é dada por alguns intelectuais nos meios de comunicação. Diz que se está desconsiderando o contexto e a história nas interpretações, o que justifica que um crime hediondo sucedido hoje seja amanhã objeto de artigos precipitados e superficiais sobre o tema.
Não pode haver um crime, que logo já se fala dele em todos os lugares. Detalhes da cena, deduções e relatos sobre as pegadas do pai que jogou a criança pela janela, o bebê que atiraram na lixeira ou o menino que os bandidos arrastaram preso ao cinturão por vários quarteirões enquanto tentavam roubar um carro. É evidente que essas notícias chocam. No entanto, temos que discernir entre objeto de sensacionalismo e argumento a favor de mudanças políticas e sociais.
Contrariamente ao que se crê, a violência não só se manifesta em países subdesenvolvidos e às vezes é até mais cruel que nestes. Recordo das chacinas dentro de escolas nos Estados Unidos, ou do atentado num metrô na Espanha, ou dos conflitos étnico-religiosos na Irlanda. Um tratamento diferenciado e não mercantil à questão da violência é o que promove sua redução. A compreensão de que ela resulta de um conjunto de contradições e desigualdades tanto nacionais como mundiais requer uma reorientação humana. Uma pisada com sapatos novos.
Neste contexto, lembro-me de um conselho que já me deram, tão proveitoso quanto aplicável, de que sempre temos duas opções: enfrentar ou ceder, sorrir ou lamentar, aceitar ou fraquejar, viver ou morrer. Embora não se reduzam a duas senão a muitas outras opções na prática, a escolha por uma orientação diante da vida serve como incentivo e contrapeso a uma situação de lamúrias a que, se não nos vigiarmos, entregamo-nos em tropeços. O mundo é o que fazemos dele: passos firmes ou trôpegos.
O gentil também ensina a dar bons passos e tem forte vínculo com o estudo das diversas formas de vida. Eu diria, mais que isso, que o gentil é um semeador: provoca atitude e sorriso. Enquanto o mundo não gira sem a selvageria, ele mostra a face vencedora. Enquanto a indignação transparece nos receios da existência, ele comprova que o ser humano é o responsável pelo ambiente e faz dele o que projeta. Entre as duas opções, ele sugere que tem uma que nos realiza mais. Basta regular os passos.
Ontem eu só escutava os passos do gentil assim que ele passava. Hoje eu espero por eles.

Bruno Peron Loureiro é bacharel em Relações Internacionais
 

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