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Mato Grosso do Sul, 16 de abril

Lea T: “Todas as mulheres podem representar a Vênus de Boticelli”

Com sensibilidade e olhar atento, a top Lea T atualizada as demandas da comunidade trans e se posiciona contra o conservadorismo preconceituoso

Por Redação
05/01/2018 • 06h00
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Após uma campanha para a Givenchy, de Riccardo Tisci, em 2010, Lea T foi apresentada ao mundo como a primeira mulher transexual a alcançar um papel de destaque na moda. De lá para cá, sua lista de conquistas só tem aumentado. Ela ganhou uma capa pioneira da ELLE (em dezembro de 2011), tornou- -se embaixadora da marca de produtos para cabelo Redken (em 2014), foi selecionada pela Forbes como uma das mulheres que revolucionaram a moda italiana, ao lado de figuras como Silvia Fendi e Miuccia Prada, em 2015, e participou da abertura dos Jogos Olímpicos, no Rio, em 2016, além de continuar a estrelar grandes campanhas e desfiles.

Para a nossa sessão de fotos, trabalhou durante quase dez horas seguidas. Enquanto arrumava seu cabelo e sugeria movimentos, Lea ia se transformando na Vênus de Botticelli – mantendo-se sempre animada ao som de um dos seus álbuns preferidos, Moon Safari, da dupla francesa Air.

A boa energia tem muita relação com o período que passou em Alto do Paraíso tentando se conhecer melhor. A região localizada na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, é famosa por conter uma das maiores bases de cristais do mundo e foi responsável por mudanças radicais na maneira como a modelo leva a vida. Hoje, aos 35 anos, ela é uma das maiores defensoras da fauna, da fora e dos habitantes locais. Durante os incêndios de outubro deste ano – que devastaram mais de 64 mil hectares de reserva natural –, Lea fez do seu perfil no Instagram uma ferramenta para captar recursos para os brigadistas que tentavam conter o fogo.

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Ela surpreende e desaponta quem a interpretou por um bom tempo como uma figura excêntrica, definindo a si mesma como “alguém que está em um frequente processo evolutivo, uma pessoa que é boa e ruim, perfeita e imperfeita”. Mistério sempre há de pintar em Lea T, mas uma parte de sua natureza se revela aqui, no papo a seguir.

Mariana Maltoni/ELLE

O que significa para você representar O Nascimento de Vênus, de Botticelli, em uma revista de moda?

Estudei artes em Florença, por isso pensei muito no significado desse quadro e cheguei à conclusão de que ela é a mulher perfeita. Então, falei para mim mesma: ‘Por que não?’ Por que não posso ser a Vênus de Boticelli? Eu posso ser perfeita mesmo tendo as minhas imperfeições. No fim das contas, todas as mulheres podem representar essa figura.

Em sua primeira capa de ELLE, em dezembro de 2011, você disse que não se achava bonita. Suas concepções de beleza se transformaram com o tempo?

Não sou a mulher mais bonita do mundo, mas me agrado. Sei como nasci e em quem me transformei, fisicamente falando, mas sei também quem mora dentro disso. Eu seria pouco respeitosa com meu espírito se falasse que me acho horrorosa. Estou ficando mais velha sem deixar de respeitar tudo o que está em volta. Para mim, é isso que importa.

Você acredita que a arte tem o poder de abrir a mente das pessoas?

Você precisa receber a arte com abertura. Isso é uma ideia que pode ser usada para aumentar a tolerância entre as pessoas. No Brasil, porém, a situação chegou a um nível de estupidez em que até o nu precisa ser censurado, segundo os conservadores. A própria Vênus, que refizemos para esta capa, é um símbolo de nudez pura, e não pervertida. Quem defende a censura é porque não tem a capacidade de perceber os corpos de uma maneira não pornográfica. Ou seja, os pervertidos são eles! Pode ser também que eles defendam uma sociedade ignorante, já que, em uma realidade como essa, é mais fácil de se tornar um líder. Há interesse por parte dessas pessoas de que o nosso país seja formado por jovens que não tenham informação. Isso acontece no Brasil e também fora dele.

O que mudou para quem é trans desde quando você começou?

Na moda, se apresentar como trans, trabalhar e querer os mesmos direitos das outras meninas foi um choque. Fui capa porque eu era exceção, e não porque era a mais bonita. Hoje em dia, uma mulher transexual já pode sonhar em ser modelo. Mas não é uma realidade absoluta. Vivemos em um país onde, todo dia, pessoas transexuais morrem. A violência é fortíssima se você não é privilegiada. Mas, já existe um mínimo de informação. Muitas pessoas não sabiam nem o que era, mas hoje tem até novela falando disso. Saiba mais sobre a realidade das pessoas trans e travestis. 

Como é a sua relação com as outras pessoas trans, uma vez que você é uma referência para elas?

Eu tenho uma comunicação de amiga. Da mesma maneira que elas precisam de uma resposta, eu também preciso. É uma troca. Elas me ajudam a entender a realidade que depois eu vou levar para as entrevistas. Não quero ser uma alienada falando apenas da minha vida. Quero realmente ser alguém que fala sobre o quanto a nossa situação é complicada. Se por um lado estou na capa da ELLE, por outro a vida na periferia para as mulheres trans que não têm os mesmos privilégios é muito diferente e mais dolorida.


Mariana Maltoni/ELLE

Muitas delas falam sobre a questão da solidão. Como você lida com isso?

Quando você é trans, é mais difícil porque existe a problemática social. Mas você não pode se perder nisso. Eu não posso obrigar as pessoas a gostar de mim. Respeitar, sim, é uma obrigação. Mas um homem que tem vergonha de apresentar como namorada uma mulher trans é um homem que não merece estar com ela. Eu trabalho coisas tão mais profundas. Nós vamos morrer, gente. Vamos passar por uma viagem tão forte. Vou ficar chorando por causa de namorado?

O tempo que você passou em Alto do Paraíso a ajudou a chegar a essas conclusões?

Mudou a minha vida, os meus valores, meu jeito de ser, como eu me alimento. Ali, eu recebi a prova de que a natureza é mágica. Nós estamos acabando com essa riqueza, mesmo que ela continue a nos oferecer alimento, água e outros recursos. Por isso, o meu sonho é ter um pedacinho deste Brasil, que estão destruindo. Quero plantar, cuidar dos meus bichos e trabalhar nessa terra com respeito.

Existe uma razão mística que levou você para lá?

Sempre me taxaram de “misticazona”, aquela que foi morar na Chapada por causa dos cristais. Mas, para mim, é uma filosofia. O meu cabelo, por exemplo, guarda uma memória, é um sinal de força. Sempre acreditei que existe mais do que podemos ver. Os meus santos, as minhas energias, tudo o que está à minha volta é muito forte. Caso contrário, eu não teria chegado aonde eu cheguei, não.

(MDEMULHER)

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